Jesus

1. Vida. Não podemos entender os evangelhos
como biografia no sentido historiográfico contemporâneo,
mas eles se harmonizam — principalmente
no caso de Lucas — com os padrões
historiográficos de sua época e devem ser considerados
como fontes históricas. No conjunto,
apresentam um retrato coerente de Jesus e nos
proporcionam um número considerável de dados
que permitem reconstruir historicamente seu
ensinamento e sua vida pública.
O nascimento de Jesus pode ser situado pouco
antes da morte de *Herodes, o Grande (4 a.C.)
(Mt 2,1ss.). Jesus nasceu em Belém (alguns autores
preferem apontar Nazaré como sua cidade
natal) e os dados que os evangelhos oferecem em
relação à sua ascendência davídica devem ser tomados
como certos (D. Flusser, F. F. Bruce, R. E.
Brown, J. Jeremias, C. Vidal Manzanares etc.),
ainda que seja de um ramo secundário. Boa prova
dessa afirmação: quando o imperador romano
Domiciano decidiu acabar com os descendentes
do rei Davi, prendeu também alguns familiares
de Jesus. Exilada sua família para o Egito (um
dado mencionado também no Talmude e em outras
fontes judaicas), esta regressou à Palestina
após a morte de Herodes, mas, temerosa de
Arquelau, fixou residência em Nazaré, onde se
manteria durante os anos seguintes (Mt 2,22-23).
Exceto um breve relato em Lc 2,21ss., não existem
referências a Jesus até os seus trinta anos.
Nessa época, foi batizado por *João Batista (Mt
3 e par.), que Lucas considera parente próximo
O nome de Jesus em aramaico e grego,
escrito nas tumbas de Jerusalém
164 /
de Jesus (Lc 1,39ss.). Durante seu Batismo, Jesus
teve uma experiência que confirmou sua
autoconsciência de filiação divina e messianidade
(J. Klausner, D. Flusser, J. Jeremias, J. H.
Charlesworth, M. Hengel etc.). De fato, no quadro
atual das investigações (1995), a tendência
majoritária dos investigadores é aceitar que,
efetivamernte, Jesus viu a si mesmo como Filho
de Deus — num sentido especial e diferente do
de qualquer outro ser — e messias. Sustentada
por alguns neobultmanianos e outros autores, a
tese de que Jesus não empregou títulos para referir-
se a si mesmo é — em termos meramente históricos
— absolutamente indefendível e carente
de base como têm manifestado os estudos mais
recentes (R. Leivestadt, J. H. Charlesworth, M.
Hengel, D. Guthrie, F. F. Bruce, I. H. Marshall, J.
Jeremias, C. Vidal Manzanares etc.). Quanto à sua
percepção de messianidade, pelo menos a partir
dos estudos de T. W. Manson, pouca dúvida existe
de que esta foi compreendida, vivida e expressada
por Jesus na qualidade de *Servo de Yahveh
(Mt 3,16 e par.) e de *Filho do homem (no mesmo
sentido, F. F. Bruce, R. Leivestadt, M. Hengel,
J. H. Charlesworth, J. Jeremias, I. H. Marshall,
C. Vidal Manzanares etc.). É possível também que
essa autoconsciência seja anterior ao batismo. Os
sinóticos — e subentendido em João — fazem
referência a um período de tentação diabólica que
Jesus experimentou depois do batismo (Mt 4,1ss.
e par.) e durante o qual se delineara plenamente
seu perfil messiânico (J. Jeremias, D. Flusser, C.
Vidal Manzanares, J. Driver etc.), rejeitando os
padrões políticos (os reinos da terra), meramente
sociais (as pedras convertidas em pão) ou espetaculares
(lançar-se do alto do *Templo) desse
messianismo. Esse período de tentação corresponde,
sem dúvida, a uma experiência histórica
— talvez relatada por Jesus a seus discípulos
— que se repetiria, vez ou outra, depois do
início de seu ministério. Após esse episódio, iniciou-
se a primeira etapa do ministério de Jesus,
que transcorreu principalmente na Galiléia, com
breves incursões por território pagão e pela
Jesus
/ 165
Samaria. O centro da pregação consistiu em chamar
“as ovelhas perdidas de Israel”; contudo, Jesus
manteve contatos com pagãos e até mesmo
chegou a afirmar não somente que a fé de um deles
era a maior que encontrara em Israel, mas que
também chegaria o dia em que muitos como ele
se sentariam no Reino com os patriarcas (Mt 8,5-
13; Lc 7,1-10). Durante esse período, Jesus realizou
uma série de *milagres (especialmente curas
e expulsão de *demônios), confirmados pelas fontes
hostis do Talmude. Mais uma vez, a tendência
generalizada entre os historiadores atualmente é
a de considerar que pelo menos alguns deles relatados
nos evangelhos aconteceram de fato (J.
Klausner, M. Smith, J. H. Charlesworth, C. Vidal
Manzanares etc.) e, naturalmente, o tipo de narrativa
que os descreve aponta a sua autencidade.
Nessa mesma época, Jesus começou a pregar uma
mensagem radical — muitas vezes expressa em
*parábolas — que chocava com as interpretações
de alguns setores do judaísmo, mas não com a
sua essência (Mt 5-7). No geral, o período concluiu
com um fracasso (Mt 11,20ss.). Os *irmãos
de Jesus não creram nele (Jo 7,1-5) e, com sua
mãe, pretendiam afastá-lo de sua missão (Mc
3,31ss. e par.). Pior ainda reagiram seus
conterrâneos (Mt 13,55ss.) porque a sua pregação
centrava-se na necessidade de *conversão ou
mudança de vida em razão do *Reino, e Jesus
pronunciava terríveis advertências às graves conseqüências
que viriam por recusarem a mensagem
divina, negando-se terminantemente em tornar-
se um messias político (Mt 11,20ss.; Jo 6,15).
O ministério na Galiléia — durante o qual subiu
várias vezes a Jerusalém para as *festas judaicas,
narradas principalmente no evangelho de *João
— foi seguido por um ministério de passagem
pela Peréia (narrado quase que exclusivamente
por Lucas) e a última descida a Jerusalém (seguramente
em 30 d.C.; menos possível em 33 ou 36
d.C.), onde aconteceu sua entrada em meio do
entusiasmo de bom número de peregrinos que lá
estavam para celebrar a Páscoa e que relacionaram
o episódio com a profecia messiânica de
Jesus
166 /
Zc 9,9ss. Pouco antes, Jesus vivera uma experiência
— à qual convencionalmente se denomina
Transfiguração — que lhe confirmou a idéia
de descer a Jerusalém. Nos anos 30 do presente
século, R. Bultmann pretendeu explicar esse acontecimento
como uma projeção retroativa de uma
experiência pós-pascal. O certo é que essa tese é
inadmissível — hoje, poucos a sustentariam — e
o mais lógico, é aceitar a historicidade do fato
(D. Flusser, W. L. Liefeld, H. Baltensweiler, F. F.
Bruce, C. Vidal Manzanares etc.) como um momento
relevante na determinação da autoconsciência
de Jesus. Neste, como em outros aspectos,
as teses de R. Bultmann parecem confirmar
as palavras de R. H. Charlesworth e outros autores,
que o consideram um obstáculo na investigação
sobre o Jesus histórico.
Contra o que às vezes se afirma, é impossível
questionar o fato de Jesus saber que morreria
violentamente. Realmente, quase todos os historiadores
hoje consideram que Jesus esperava que
assim aconteceria e assim o comunicou a seus
discípulos mais próximos (M. Hengel, J. Jeremias,
R. H. Charlesworth, H. Schürmann, D. Guthrie,
D. Flusser, F. F. Bruce, C. Vidal Manzanares etc).
Sua consciência de ser o Servo do Senhor, do qual
se fala em Is 53 (Mc 10,43-45), ou a menção ao
seu iminente sepultamento (Mt 26,12) são apenas
alguns dos argumentos que nos obrigam a
chegar a essa conclusão.
Quando Jesus entrou em Jerusalém durante a
última semana de sua vida, já sabia da oposição
que lhe faria um amplo setor das autoridades religiosas
judias, que consideravam sua morte uma
saída aceitável e até desejável (Jo 11,47ss.), e que
não viram, com agrado, a popularidade de Jesus
entre os presentes à festa. Durante alguns dias,
Jesus foi examinado por diversas pessoas, com a
intenção de pegá-lo em falta ou talvez somente
para assegurar seu destino final (Mt 22,15ss. e
par.) Nessa época — e possivelmente já o fizesse
antes —, Jesus pronunciou profecias relativas à
destruição do Templo de Jerusalém, cumpridas
Jesus
/ 167
no ano 70 d.C. Durante a primeira metade deste
século, alguns autores consideraram que Jesus
jamais anunciara a destruição do Templo e que as
mencionadas profecias não passavam de um
“vaticinium ex eventu”. Hoje em dia, ao contrário,
existe um considerável número de pesquisadores
que admite que essas profecias foram mesmo
pronunciadas por Jesus (D. Aune, C. Rowland,
R. H. Charlesworth, M. Hengel, F. F. Bruce, D.
Guthrie, I. H. Marshall, C. Vidal Manzanares etc.)
e que o relato delas apresentado pelos sinóticos
— como já destacou C. H. Dodd no seu tempo —
não pressupõe, em absoluto, que o Templo já tivesse
sido destruído. Além disso, a profecia da
destruição do Templo contida na fonte *Q, sem
dúvida anterior ao ano 70 d.C., obriga-nos também
a pensar que as referidas profecias foram
pronunciadas por Jesus. De fato, quando Jesus
purificou o Templo à sua entrada em Jerusalém,
já apontava simbolicamente a futura destruição
do recinto (E. P. Sanders), como ressaltaria a
seus discípulos em particular (Mt 24-25; Mc 13;
Lc 21).
Na noite de sua prisão e no decorrer da ceia
pascal, Jesus declarou inaugurada a *Nova Aliança
(Jr 31,27ss.), que se fundamentava em sua
morte sacrifical e expiatória na *cruz. Depois de
concluir a celebração, consciente de sua prisão
que se aproximava, Jesus dirigiu-se ao Getsêmani
para orar com alguns de seus *discípulos mais
íntimos. Aproveitando a noite e valendo-se da traição
de um dos *apóstolos, as autoridades do Templo
— em sua maior parte *saduceus — apoderaram-
se de Jesus, muito provavelmente com o auxílio
de forças romanas. O interrogatório, cheio
de irregularidades, perante o Sinédrio pretendeu
esclarecer e até mesmo impor a tese da existência
de causas para condená-lo à morte (Mt 26,57ss. e
par.). O julgamento foi afirmativo, baseado em
testemunhas que asseguraram ter Jesus anunciado
a destruição do Templo (o que tinha uma clara
base real, embora com um enfoque diverso) e
sobre o próprio testemunho do acusado, que se
identificou como o messias — Filho do homem
Jesus
168 /
de Dn 7,13. O problema fundamental para executar
Jesus consistia na impossibilidade de as autoridades
judias aplicarem a pena de morte. Quando
o preso foi levado a Pilatos (Mt 27,11ss. e par.),
este compreendeu tratar-se de uma questão meramente
religiosa que não lhe dizia respeito e evitou,
inicialmente, comprometer-se com o assunto.
Convencidos os acusadores de que somente
uma acusação de caráter político poderia acarretar
a desejada condenação à morte, afirmaram a
Pilatos que Jesus era um agitador subversivo (Lc
23,1ss.). Mas Pilatos, ao averiguar que Jesus era
galileu e valendo-se de um procedimento legal,
remeteu a causa a Herodes (Lc 23,6ss.), livrando-
se momentaneamente de proferir a sentença.
Sem dúvida alguma, o episódio do interrogatório
de Jesus diante de *Herodes é histórico (D.
Flusser, C. Vidal Manzanares, F. F. Bruce etc.) e
parte de uma fonte muito primitiva. Ao que parece,
Herodes não achou Jesus politicamente perigoso
e, possivelmente, não desejando fazer um
favor às autoridades do Templo, apoiando um
ponto de vista contrário ao mantido até então por
Pilatos, preferiu devolver Jesus a ele. O romano
aplicou-lhe uma pena de flagelação (Lc 23,1ss.),
provavelmente com a idéia de que seria punição
suficiente (Sherwin-White), mas essa decisão em
nada abrandou o desejo das autoridades judias de
matar Jesus. Pilatos propôs-lhes, então, soltar Jesus,
amparando-se num costume, em virtude do
qual se podia libertar um preso por ocasião da
Páscoa. Todavia, uma multidão, presumivelmente
reunida pelos acusadores de Jesus, pediu que se
libertasse um delinqüente chamado Barrabás em
lugar daquele (Lc 23,13ss. e par.). Ante a ameaça
de que a questão pudesse chegar aos ouvidos do
imperador e o temor de envolver-se em problemas
com este, Pilatos optou finalmente por condenar
Jesus à morte na cruz. Este se encontrava
tão extenuado que, para carregar o instrumento
de suplício, precisou da ajuda de um estrangeiro
(Lc 23,26ss. e par.), cujos filhos, mais tarde, seriam
cristãos (Mc 15,21; Rm 16,13). Crucificado
junto a dois delinqüentes comuns, Jesus morreu
Jesus
/ 169
ao final de algumas horas. Então, seus discípulos
fugiram — exceto o discípulo amado de Jo 19,25-
26 e algumas mulheres, entre as quais se encontrava
sua mãe — e um deles, *Pedro, até mesmo
o negou em público várias vezes. Depositado no
sepulcro de propriedade de *José de Arimatéia,
um discípulo secreto que recolheu o corpo, valendo-
se de um privilégio concedido pela lei romana
relativa aos condenados à morte, ninguém
tornou a ver Jesus morto.
No terceiro dia, algumas mulheres que tinham
ido levar perfumes para o cadáver encontraram o
sepulcro vazio (Lc 24,1ss. e par.). Ao ouvirem
que Jesus ressuscitara, a primeira reação dos discípulos
foi de incredulidade (Lc 24,11). Sem dúvida,
Pedro convenceu-se de que era real o que as
mulheres afirmavam após visitar o sepulcro
(Lc 24,12; Jo 20,1ss.). No decorrer de poucas
horas, vários discípulos afirmaram ter visto Jesus.
Mas os que não compartilharam a experiência,
negaram-se a crer nela, até passarem por uma
semelhante (Jo 20,24ss.). O fenômeno não se limitou
aos seguidores de Jesus, mas transcendeu
os limites do grupo. Assim Tiago, o irmão de Jesus,
que não aceitara antes suas afirmações, passou
então a crer nele, em conseqüência de uma
dessas aparições (1Cor 15,7). Naquele momento,
segundo o testemunho de Paulo, Jesus aparecera
a mais de quinhentos discípulos de uma só vez,
dos quais muitos ainda viviam vinte anos depois
(1Cor 15,6). Longe de ser uma mera vivência subjetiva
(R. Bultmann) ou uma invenção posterior
da comunidade que não podia aceitar que tudo
terminara (D. F. Strauss), as fontes apontam a
realidade das aparições assim como a antigüidade
e veracidade da tradição relativa ao túmulo
vazio (C. Rowland, J. P. Meier, C. Vidal Manzanares
etc.). Uma interpretação existencialista do
fenômeno não pôde fazer justiça a ele, embora o
historiador não possa elucidar se as aparições foram
objetivas ou subjetivas, por mais que esta
última possibilidade seja altamente improvável
(implicaria num estado de enfermidade mental em
pessoas que, sabemos, eram equilibradas etc.).
Jesus
170 /
O que se pode afirmar com certeza é que as aparições
foram decisivas na vida ulterior dos seguidores
de Jesus. De fato, aquelas experiências concretas
provocaram uma mudança radical nos até
então atemorizados discípulos que, apenas umas
semanas depois, enfrentaram corajosamente as
mesmas autoridades que maquinaram a morte de
Jesus (At 4). As fontes narram que as aparições
de Jesus se encerraram uns quarenta dias depois
de sua ressurreição. Contudo, Paulo — um antigo
perseguidor dos cristãos — teve mais tarde a
mesma experiência, cuja conseqüência foi a sua
conversão à fé em Jesus (1Cor 15,7ss.) (M.
Hengel, F. F. Bruce, C. Vidal Manzanares etc.).
Sem dúvida, aquela experiência foi decisiva e
essencial para a continuidade do grupo de discípulos,
para seu crescimento posterior, para que
eles demonstrassem ânimo até mesmo para enfrentar
a morte por sua fé em Jesus e fortalecer
sua confiança em que Jesus retornaria como *messias
vitorioso. Não foi a fé que originou a crença
nas aparições — como se informa em algumas
ocasiões —, mas a sua experiência que foi
determinante para a confirmação da quebrantada
fé de alguns (Pedro, Tomé etc.), e para a manifestação
da mesma fé em outros até então incrédulos
(Tiago, o irmão de Jesus etc.) ou mesmo
declaradamente inimigos (Paulo de Tarso).
2. Autoconsciência. Nas últimas décadas, temse
dado enorme importância ao estudo sobre a
autoconsciência de Jesus (que pensava Jesus de
si mesmo?) e sobre o significado que viu em sua
morte. O elemento fundamental da autoconsciência
de Jesus deve ter sido sua convicção de
ser *Filho de Deus num sentido que não podia
ser compartilhado com mais ninguém e que não
coincidia com pontos de vista anteriores do tema
(rei messiânico, homem justo etc.), embora pudesse
também englobá-los. Sua originalidade em
chamar a Deus de *Abba (lit. papaizinho) (Mc
14,36) não encontra eco no judaísmo até a Idade
Média e indica uma relação singular confirmada
no *batismo, pelas mãos de João Batista, e na
Transfiguração. Partindo daí, podemos entender
Jesus
/ 171
o que pensava Jesus de si mesmo. Exatamente
por ser o Filho de Deus — e dar a esse título o
conteúdo que ele proporcionava (Jo 5,18) — nas
fontes talmúdicas, Jesus é acusado de fazer-se
Deus. A partir de então, manifesta-se nele a certeza
de ser o messias; não, porém, um qualquer,
mas um messias que se expressava com as qualidades
teológicas próprias do *Filho do homem e
do *Servo de YHVH. Como já temos assinalado,
essa consciência de Jesus de ser o Filho de Deus
é atualmente admitida pela maioria dos historiadores
(F. F. Bruce, D. Flusser, M. Hengel, J. H.
Charlesworth, D. Guthrie, M. Smith, I. H.
Marshall, C. Rowland, C. Vidal Manzanares etc.),
ainda que se discuta o seu conteúdo delimitado.
O mesmo se pode afirmar quanto à sua
messianidade.
Como já temos mostrado, evidentemente Jesus
esperava sua morte. Que deu a ela um sentido
plenamente expiatório, deduz-se das próprias afirmações
de Jesus acerca de sua missão (Mc 10,45),
assim como do fato de identificar-se com o Servo
de YHVH (Is 52,13-53,12), cuja missão é levar
sobre si o peso do pecado dos desencaminhados
e morrer em seu lugar de forma expiatória (M.
Hengel, H. Schürmann, F. F. Bruce, T. W. Manson,
D. Guthrie, C. Vidal Manzanares etc.). É bem
possível que sua crença na própria ressurreição
também partia do Cântico do Servo em Is 53 já
que, como se conservou na Septuaginta e no rolo
de Isaías encontrado em *Qumrán, do Servo esperava-
se que ressuscitasse depois de ser morto
expiatoriamente. Quanto ao seu anúncio de
retornar no final dos tempos como juiz da humanidade,
longe de ser um recurso teológico articulado
por seus seguidores para explicar o suposto
fracasso do ministério de Jesus, conta com paralelos
na literatura judaica que se refere ao messias
que seria retirado por Deus e voltaria definitivamente
para consumar sua missão (D. Flusser,
C. Vidal Manzanares etc.).
3. Ensinamento. A partir desses dados seguros
sobre a vida e a autoconsciência de Jesus,
podemos reconstruir as linhas mestras fundamen-
Jesus
172 /
tais de seu ensinamento. Em primeiro lugar, sua
mensagem centralizava-se na crença de que todos
os seres humanos achavam-se em uma situação
de extravio ou perdição (Lc 15 e par. no Documento
Q). Precisamente por isso, Jesus chamava
ao *arrependimento ou à *conversão, porque
com ele o Reino chegava (Mc 1,14-15). Essa conversão
implicava uma transformação espiritual
radical, cujos sinais característicos estão coletados
tanto nos ensinamentos de Jesus como os contidos
no Sermão da Montanha (Mt 5-7), e teria
como marco a *Nova Aliança profetizada por
Jeremias e inaugurada com a morte expiatória do
messias (Mc 14,12ss. e par.). Deus vinha, em Jesus,
buscar os perdidos (Lc 15), e este dava sua
vida inocente como resgate por eles (Mc 10,45),
cumprindo assim sua missão como *Servo de
YHVH. Todos podiam agora — independente de
seu presente ou de seu passado — acolher-se no
seu chamado. Isto supunha reconhecer que todos
eram pecadores e que ninguém podia apresentarse
como justo diante de Deus (Mt 16,23,35; Lc
18,9-14 etc.). Abria-se então um período da história
— de duração indeterminada — durante o
qual os povos seriam convidados a aceitar a mensagem
da Boa Nova do Reino, enquanto o diabo
se ocuparia de semear a cizânia (Mt 13,1-30.36-
43 e par.) para sufocar a pregação do evangelho.
Durante essa fase e apesar de todas as artimanhas
demoníacas, o Reino cresceria a partir de seu insignificante
início (Mt 13,31-33 e par.) e concluiria
com o regresso do messias e o juízo final. Diante
da mensagem de Jesus, a única atitude lógica
consistiria em aceitar o Reino (Mt 13,44-46;
8,18-22), apesar das muitas renúncias que isso
significasse. Não haveria possibilidade intermediária
— “Quem não estiver comigo estará
contra mim” (Mt 12,30ss. e par.) — e o destino
dos que o rejeitaram, o final dos que não manisfestaram
sua fé em Jesus não seria outro senão
o castigo eterno, lançados às trevas exteriores,
em meio de choro e ranger de dentes,
independentemente de sua filiação religiosa
(Mt 8,11-12 e par.).
Jesus
/ 173
À luz dos dados históricos de que dispomos
— e que não se limitam às fontes cristãs, mas que
incluem outras claramente hostis a Jesus e ao
movimento que dele proveio —, pode-se observar
o absolutamente insustentável de muitas das
versões populares que sobre Jesus têm circulado.
Nem a que o converte em um revolucionário ou
em um dirigente político, nem a que faz dele um
mestre de moral filantrópica, que chamava ao
amor universal e que olhava todas as pessoas com
benevolência (já não citamos aqueles que fazem
de Jesus um guru oriental ou um extraterrestre)
contam com qualquer base histórica. Jesus afirmou
que tinha a Deus por Pai num sentido que
nenhum ser humano poderia atrever-se a imitar,
que era o de messias — entendido como Filho do
homem e Servo do Senhor; que morreria para
expiar os pecados humanos; e que, diante dessa
demonstração do amor de Deus, somente caberia
a cada um aceitar Jesus e converter-se ou rejeitálo
e caminhar para a ruína eterna. Esse radicalismo
sobre o destino final e eterno da humanidade
exigia — e continua exigindo — uma resposta
clara, definida e radical; serve também para darnos
uma idéia das reações que esse radicalismo
provocava (e ainda provoca) e das razões, muitas
vezes inconscientes, que movem as pessoas a
castrá-lo, com a intenção de obterem um resultado
que não provoque tanto nem se dirija tão ao
fundo da condição humana. A isso acrescentamos
que a autoconsciência de Jesus é tão extraordinária
em relação a outros personagens históricos que
— como acertadamente ressaltou o escritor e professor
britânico C. S. Lewis — dele só resta pensar
que era um louco, um farsante ou, exatamente,
quem dizia ser.
R. Dunkerley, o. c.; D. Flusser, o. c.; J. Klausner, o.c.; A.
Edersheim, o. c.; C. Vidal Manzanares, El judeo-cristianismo...;
Idem, El Primer Evangelio: o Documento Q, Barcelona
1993; Idem, Diccionario de las tres...; A. Kac (ed), The
Messiahship of Jesus, Grand Rapids, 1986; J. Jeremias, Abba,
Salamanca 1983; Idem Teología...; O. Cullmann,
Christology...; F. F. Bruce, New Testament...; Idem, Jesus
and Christian Origins Outside the New Testament, Londres
1974; A. J. Toynbee, o. c.; M. Hengel, The Charismatic
Leader and His Followers, Edimburgo 1981.