Lucas, Evangelho de

1. Autoria e datação. Esse evangelho forma
um díptico com o Livro dos Atos dos Apóstolos.
Atualmente, existe unanimidade quase total para
se aceitar a opinião de que ambas as obras per-
Início do evangelho segundo Lucas
(Códice Vaticano, séc. IV)
tencem ao mesmo autor e que, evidentemente,
Lucas foi escrito com anterioridade, conforme
indicam os primeiros versículos do Livro dos
Atos. Desde os finais do séc. I (I Clemente 13,2 e
48,4) atribui-se o evangelho — e, logicamente,
Atos — a um certo Lucas, que é mencionado já
no Novo Testamento (Cl 4,14; Fm 24; 2Tm 4,11).
A língua e o estilo do evangelho, em si, não permitem
rejeitar ou aceitar essa tradição, de maneira
indiscutível. O britânico Hobart tentou demonstrar
que no vocabulário do evangelho apareciam
traços dos conhecimentos médicos do autor, como
se percebe em 4,38; 5,18.31; 7,10; 13,11; 22,14
etc. Esses termos, porém, podem ser encontrados
em autores de certa formação cultural como Josefo
ou Plutarco. Por outro lado, o especial interesse
do terceiro evangelho pelos pagãos encaixar-seia
com a suposta origem pagã do médico Lucas.
Embora, como salientou O. Cullmann, “não temos
razão forte para negar que o autor pagãocristão
seja o mesmo Lucas, o companheiro de
Paulo”, tampouco existem razões para afirmá-lo
com dogmatismo.
Quanto à datação, a maioria dos autores sustenta
hoje uma data pouco anterior à da redação
dos Atos, a qual se costuma fixar entre 80 e 90
d.C. Evidentemente, a datação que atribuímos a
Atos repercutirá na que atribuímos a Lucas. Em
relação àquele, N. Perrin aponta o ano de 85, com
uma margem de cinco anos anteriores ou posteriores;
E. Lohse indica 90 d.C.; P. Vielhauer, uma
data próxima a 90 e O. Cullmann defende uma
entre 80 e 90. O “terminus ad quem” da data de
redação da obra é fácil de ser fixado porque o
primeiro testemunho externo que temos dela encontra-
se na Epistula Apostolorum, datada da primeira
metade do séc II. Quanto ao “terminus ad
quo”, tem sido objeto de maior controvérsia. Para
alguns autores, seria 95 d.C., baseando-se na idéia
de que At 5,36ss. depende de Josefo (Ant XX,
97ss.). Mas essa dependência destacada por E.
Schürer é muito discutida e, hoje em dia, geralmente
abandonada. Tampouco são de maior utilidade
as teorias que partem da não-utilização das
Lucas, Evangelho de
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cartas de *Paulo, ainda mais se levarmos em conta
que é comum essas formulações chegarem a conclusões
diametralmente opostas. A opinião de que
não existia uma coleção das cartas de Paulo (mediante
o que o livro teria sido escrito no século I,
possivelmente em data muito tardia) opõe-se à
de que o autor ignorou conscientemente as cartas,
o que dataria a obra entre 115 e 130 d.C. No
entanto, a aceitação da segunda tese suporia uma
tendência do autor a subestimar as cartas paulinas
em favor de um elogio ao apóstolo, o que — conforme
destacou P. Vielhauer — é improvável e,
contrariamente, torna mais verossímil a primeira
tese.
Não devem ser menosprezados os argumentos
que apontam a possibilidade de que tanto
Lucas como Atos foram escritos antes do ano 70
d.C. Atos termina com a chegada de Paulo a
Roma. Não aparecem menções de seu processo
nem da perseguição de Nero, nem muito menos
de seu martírio. A isso se acrescente o fato de que
o poder romano foi tratado com apreço (mas não
com adulação) nos Atos, e a atmosfera que se respira
na obra não pressagia nenhuma perseguição
futura nem mesmo o que se vivera na mesma umas
décadas antes. Como afirma B. Reicke, “a única
explicação razoável para o abrupto final dos Atos
é aceitar que Lucas nada sabia dos acontecimentos
posteriores ao ano 62, quando escreveu seus
dois livros”. Em segundo lugar, embora *Tiago,
o *irmão do Senhor, fosse martirizado no ano 62
por seus compatriotas judeus, o fato não está registrado
nos Atos. Sabe-se que Lucas dá considerável
importância a Tiago (At 15) e que não omite
as referências negativas à classe sacerdotal e
religiosa judaica, tal como se deduz de relatos
como o da morte de Estêvão, a execução do outro
Tiago, a perseguição a *Pedro ou as dificuldades
ocasionadas a Paulo por seus antigos correligionários.
O silêncio de Atos quanto ao martírio de
Tiago é, pois, algo que só pode ser explicado, de
maneira lógica, se aceitarmos que Lucas escreveu
antes de acontecer o mencionado fato, isto é,
antes de 62 d.C. Em terceiro lugar, os Atos não
Lucas, Evangelho de
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mencionam absolutamente a destruição de Jerusalém
e do Segundo Templo. Esse acontecimento
serviu para confirmar boa parte das opiniões
sustentadas pela Igreja primitiva e, efetivamente,
foi empregado repetidas vezes por autores cristãos
em suas controvérsias com judeus. Exatamente
por isso, é muito difícil admitir que Lucas
omitira o fato, ainda mais se levamos em conta
que Lucas costumava mencionar o cumprimento
das profecias cristãs (At 11,28). Portanto, se Atos
foi escrito antes de 62 d.C. e os argumentos em
favor dessa tese são bastante consideráveis, ainda
mais antiga deve ser a data de redação do evangelho
de Lucas. A única objeção aparentemente
importante para opôr-se a essa opinião é que, supostamente,
a descrição da destruição do Templo
em Lc 21 deve ter sido escrita posteriormente ao
fato, sendo assim um “vaticinium ex eventu”. Essa
afirmação é, contudo, escassamente sólida pelas
seguintes razões: 1. Os antecedentes judeus
veterotestamentários em relação à destruição do
Templo (Ez 40-48; Jeremias etc.). 2. A coincidência
com prognósticos contemporâneos no judaísmo
anterior a 70 d.C. (por exemplo: Jesus,
filho de Ananias, em Guerra VI, 300-309). 3. A
simplicidade das descrições nos sinóticos, que
deveriam ser mais prolixas, se fossem escritas
após a destruição de Jerusalém. 4. A origem
terminológica das descrições no Antigo Testamento.
5. A acusação formulada contra Jesus em relação
à destruição do Templo (Mc 14,55ss.). 6. As
referências em *Q — escritas antes de 70 d.C. —
a uma destruição do Templo. De tudo que se afirmou,
deduz-se que não há razões de solidez que
obriguem a datar Lucas em 70 d.C. e que, o mais
possível, é ele ter escrito antes de 62 d.C. De fato,
já no seu tempo, C. H. Dodd (“The Fall of
Jerusalem and the Abomination of Desolation”
em Journal of Roman Studies, 37, 1947, pp. 47-
54) salientou que o relato dos sinóticos não partia
da destruição realizada por Tito, mas da invasão
de Nabucodonosor em 586 a.C.; também afirmou
que “não existe um só traço da predição que não
possa ser documentado diretamente a partir do
Lucas, Evangelho de
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Antigo Testamento”. Antes, C. C. Torrey (Documents
of the Primitive Church, 1941, pp. 20ss.)
indicara também a influência de Zc 14,2 e outras
passagens do relato lucano sobre a futura destruição
do Templo. Igualmente, N. Geldenhuys (The
Gospel of Luke, Londres 1977, pp. 531ss.) destacou
a possibilidade de Lucas utilizar uma versão
anteriormente escrita do Apocalipse sinótico, que
recebeu especial atualidade com a intenção — no
ano 40 d.C. — de se colocar uma estátua imperial
no Templo e da qual haveria ecos em 2Ts 2.
Concluindo, podemos destacar que, embora a
maioria coloque a datação de Lucas e Atos entre
80 e 90, existem argumentos fundamentalmente
históricos que obrigam a questionar esse ponto
de vista e a formular seriamente a possibilidade
de a obra ter sido escrita em um período anterior
ao ano 62, quando aconteceu a morte de Tiago,
autêntico “terminus ad quem” da obra. Semelhante
é o ponto de vista defendido nos últimos anos
por bom número de autores tanto em relação ao
evangelho de Lucas (alguns, como D. Flusser ou
R. L. Lindsay, consideram até que foi o primeiro
a ser redigido) como também ao conjunto dos
*sinóticos.
2. Estrutura e mensagem. O evangelho de
Lucas pode ser dividido em cinco partes específicas:
1. A introdução e os relatos da concepção e
nascimento de João Batista e de Jesus (1,1-2,52);
2. A missão de João Batista e a preparação para o
ministério de Jesus (3,1-4,13); 3. O ministério
galileu de Jesus (4,14-9,50); 4. A viagem a Jerusalém
e o ministério na Peréia (9,51-19,44); 5. A
entrada em Jerusalém e a paixão, morte e ressurreição
de Jesus (19,45-24,53).
Cristologicamente, Lucas identifica Jesus com
o *messias — *Servo de YHVH de Isaías 42 e 53
(Lc 9,20ss.), o redentor de Israel (24,21), o *Filho
do homem (5,24; 22,69), *o Senhor (20,41-
44; 21,27; 22,69) — um dos títulos mais usados
por este evangelho em relação com Jesus: aquele
que salva (2,11; 1,70-75; 2,30-32); o Filho de
*Davi (1,27.32.69; 2,4.11; 18,38-39); o Rei
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(18,38); o Mestre (7,40; 8,49; 9,38; 10,25; 11,45;
12,13; 18,18; 19,39; 20,21.28.39; 21,7; 22,11) e,
de maneira muito especial, o *Filho de Deus
(1,35; 2,49; 3,21; 3,38; 4,3.9.41; 9,35; 10,21-22)
que se relaciona com o *Pai, de uma forma que
não admite paralelo com ninguém mais, o que
implica sua divindade. Nesse sentido, são de especial
interesse a identificação entre Jesus e a
*Hipóstase divina da *Sabedoria (7,35; 11,49-
51) assim como a aplicação a Jesus de passagens
que originalmente se referem a YHVH no Antigo
Testamento (Is 40,3 com Lc 3,3-4).
É precisamente Jesus — que se apresenta com
essas prerrogativas — que traz o *Reino (4,18.43;
7,22; 8,1; 9,6; 10,11), determinando assim um
marco sem comparação na história da humanidade.
Com seu ministério, deu início a um novo tempo
(17,20-21), em que as forças demoníacas serão
derrotadas um dia (10,18-20) e em que se
questiona radicalmente a religiosidade sem misericórdia
(11,43-46); o monopólio de Deus por
uma classe religiosa (11,52); a obediência a normas
externas sem pureza de coração (11,37-39a);
a negligência do essencial na *Lei de Deus (11,42)
e a perseguição dos que se opõem a essa forma
de vida (11,43-54).
O mundo não se divide em bons e maus como
queria crer o *fariseu da *parábola (18,9-14).
Pelo contrário, todos os seres humanos estão perdidos
e necessitam do perdão gratuito do Pai para
salvar-se e da ação salvadora de Jesus, que vem
buscá-los (5,31-32; parábolas do capítulo 15).
Para poder receber essa salvação, basta reconhecer
humildemente a situação de extravio espiritual
(18,9-14) e converter-se (13,1ss.). O fundamento
para esse novo pacto entre Deus e a humanidade,
para essa *Nova Aliança, não é outra senão
a morte expiatória de Jesus na cruz (24,25-
27; 22,19-20). A transcendência de ambas as situações
— a perdição do ser humano e a iniciativa
redentora de Deus — explica a importância de
tomar uma decisão e de tomá-la já (14,15ss.), porque
aqueles que não optarem por ouvir a mensagem
só podem esperar a condenação eterna
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(10,15; 12,5). Nada pode ser apresentado como
desculpa para evitar a *conversão, porque sem
ela todos perecerão (13,1ss.). O próprio povo de
Israel — impenitente em sua maioria — teria de
reconhecer a causa de sua recusa em escutar Jesus
e os profetas (11,49-51), a destruição do Templo
(13,34-35) e da cidade santa (21,1ss.).
A perspectiva para os que decidem converterse
em seguidores de Jesus é bem diferente. A partir
desse momento, sua vida é movida pela presença
do *Espírito Santo (11,13; 12,11-12), sob
os cuidados da Providência Divina (12,22ss.) e
no amor ao próximo (10,25ss.; 6,27). Com essa
atitude, demonstram que já se iniciou o período
da história que se encerrará com o retorno de Jesus
(21,34ss.), com o juízo de Israel (22,28-30),
com o prêmio dos discípulos (6,23; 10,20; 12,33)
e com o castigo dos incrédulos (10,13-15; 12,4-
6; 17,22ss.). Essa é, na totalidade, a mensagem
que Jesus pregou. Não se trata de uma especulação
filosófica ou de um relato simbólico, mas de
uma verdade histórica que pode ser provada por
testemunhas que ainda viviam quando se redigiu
o evangelho que Lucas enviou a *Teófilo (1,1-4)
e, por ele, às gerações vindouras.
F. Bovon, Das Evangelium nach Lukas, Zurique 1989;
F. Danker, Jesus and the New Age, Filadélfia 1988; E. E.
Ellis, The Gospel of Luke, Grand Rapids 1974; C. F. Evans,
Saint Luke, Filadélfia 1990; I. H. Marshall, Commentary on
Luke, Grand Rapids 1978; R. L. Lindsay, A Hebrew
Translation of the Gospel of Mark, Jerusalém 1969; Idem, A
New Approach to the Synoptic Gospels, Jerusalém 1971; H.
Schürmann, Das Lukasevangelium, Friburgo 1969; C. Vidal
Manzanares, El Primer Evangelio...; Idem, El judeo-cristianismo...;
J. Wenham, Redating Matthew, Mark and Luke,
Downers Grove 1992; B. H. Young, Jesus and His Jewish
Parables, Nova York 1989; J. B. Orchard, “Thessalonians
and the Synoptic Gospels” em Bb, 19, 1938, pp. 19-42 (data
Mateus entre 40 e 50, pois Mt 23,32-25.46 parece ser conhecido
por Paulo); Idem, Why Three Synoptic Gospels, 1975
(data Lucas e Marcos nos inícios dos anos 60 d.C.); B. Reicke,
o. c., p. 227 (situa também os três sinóticos antes do ano
60); J. A. T. Robinson, Redating the New Testament, Filadélfia
1976, pp. 86ss.; A. George, El Evangelio según san
Lucas, Estella131; M. Laconi, San Lucas y su iglesia, Estella
1987; L. F. García Viana, Evangelio según San Lucas, Estella 1988.