Marcos, Evangelho de

1. Autoria e datação. O evangelho de Marcos
— que, muito possivelmente, reúne a pregação
petrina — é um evangelho dirigido fundamentalmente
aos *gentios e, quase com toda a segurança,
forjado em um meio pagão. Tradicionalmente,
tem sido identificado com Roma (o que combinaria
com a missão petrina) (Eusébio, HE 2,15;
6,14.16) ou, secundariamente, com Alexandria,
em harmonia com uma tradição que situa Marcos
nessa cidade (João Crisóstomo, Hom. Mat 1,3).
É bem possível que o autor possa ser identificado
com João *Marcos. Quanto à sua datação, costuma-
se admitir, quase que unicamente, que foi escrito
antes do ano 70 d.C. e pouco antes ou pouco
depois da perseguição de Nero, embora alguns
autores o considerem ainda mais antigo. As mesmas
fontes antigas manifestam essa duplicidade
de opiniões. Para Eusébio (HE 6,14.5-7), Marcos
teria escrito seu evangelho por volta de 64-65.
Clemente de Alexandria, ao contrário, fixou-o em
uma data cujo termo “a quo” seria o ano de 45.
Mais duvidosa é a afirmação de que Marcos é o
primeiro escrito entre os quatro que o Novo Testamento
contém. Certamente é o mais breve, mas
não é menos verdade que, por exemplo, os mes-
Marcos, Evangelho de
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mos episódios em Marcos e em Mateus apresentem-
se mais elaborados no primeiro do que no
segundo.
2. Estrutura e mensagem. A estrutura de Marcos
é muito simples. Após um breve prólogo (1,1-
15), que tem início com a pregação de *João Batista,
Marcos descreve o ministério galileu de Jesus
(1,6-8,26) e, como sua consumação, a paixão,
morte e *ressurreição de Jesus (8,27-16,8).
Mesmo que Marcos não pretenda fazer teologia,
mas narrar uma história, é inegável que em
sua obra estão presentes motivos teológicos bem
definidos. O primeiro deles é o anúncio do *Reino
ao qual Marcos faz quinze referências em
contraposição às cinqüenta de Mateus e às quarenta
de Lucas. Esse Reino já se encontra presente
e pode ser recebido quando se tem o coração
puro e simples de uma criança (10,14-15 ). Sem
dúvida, sua manifestação total será futura (10,23-
25; 14,25; 14,3-20.26-29,30-32), relacionada com
o *Filho do homem — o próprio Jesus — (8,38;
13,26-32; 14,62). Exatamente por isso, os *discípulos
devem vigiar diligentemente (13,33-37).
Início do evangelho segundo Marcos
(Códice Vaticano, séc. IV)
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Nessa situação dupla de presente e futuro, de “já”
e ainda “não”, reside precisamente o mistério do
Reino ao qual fazem referências as *parábolas
(4,3-20; 26-29,30-32). A vitória sobre os *demônios
(1,21-27), a *cura dos enfermos (2,1-12), o
relacionamento direto com os *pecadores (2,13-
17), a alimentação dos famintos (6,34-44) e, evidentemente,
o chamado dos *Doze são sinais do
Reino.
O segundo aspecto central da teologia de Marcos
é sua visão de Jesus. Este é o *messias — que
se vê como *Servo de Is 42,1; 53, 1ss.; 61,1ss. —
e assim o reconhecem seus discípulos (8,29), confirmado
pela experiência da *Transfiguração (9,2-
9) e entendido através de acontecimentos como a
entrada de Jerusalém (11,1-11) nos moldes
messiânicos de Zc 9,9. Prudente no uso do título
para evitar que este fosse mal interpretado por
seus ouvintes, Jesus reconhecerá também sua
messianidade durante seu processo (14,61-62) e
assim constará no título de sua condenação (15,6-
20.26). Jesus é o messias, mas não um guerreiro.
Ele é o que veio para servir e dar a sua vida em
resgate por todos como Filho do homem (Mc
10,45). Jesus emprega esse segundo título como
referência a si mesmo tanto para ressaltar seu
poder para perdoar pecados (2,10), como sua autoridade
de Senhor do *sábado (2,28) e, naturalmente,
em relação à sua visão do messias sofredor
(8,31; 9,9.12.31; 10,33.45; 14,21.41). Embora
este seja o título preferido por Jesus para referir-
se a si mesmo, Marcos enfatiza especialmente
o de *Filho de Deus, com o qual até mesmo inicia
seu evangelho (1,1). Assim é reconhecido pelo
*Pai no *batismo, conferindo-lhe um significado
messiânico (comp. com Sl 2,7). O título “Filho
de Deus” transcende o de simples messianismo.
As referências em Mc 1,23-27; 3,11; 5,7;
9,7 supõem uma relação com Deus que supera o
simplesmente humano, e isso é o que se deduz da
própria afirmação de Jesus contida em 14,62. Atribuiu
a si mesmo um lugar à direita de Deus, e a
sua função julgadora incorre no que seus juízes
consideram uma evidente blasfêmia (14,63-64).
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Certamente a relação de Jesus com seu Pai é radicalmente
distinta da de qualquer outro ser (1,11;
9,7; 12,6; 13,32; 14,36) e transcende a simples
humanidade.
Finalmente, e como acontece nos relatos dos
outros evangelhos, Marcos também formula ao
homem a necessidade de responder à chegada do
Reino em Jesus. Na realidade, só existe uma resposta
possível: a *conversão (1,16), porque o tempo
já chegou. Será um tempo marcado pela morte
expiatória do Filho do homem (10,45) e a espera
da consumação do Reino anunciado na Ceia
do Senhor (14,25). Agora já é possível entrar no
Reino todo aquele que se aproxime com a fé de
uma criança (10,14-15). Para quem crê e é batizado
existe salvação, mas a condenação é o destino
de quem não o aceita (Mc 16,15-16). Essa
decisão — obrigatoriamente presente — não é
senão a antecipação, no hoje, da separação que
o Filho do homem fará no final dos tempos
(13,33-37).
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